O CÉREBRO DE MEU PAI
– Piauí_69_junho_2012
por JONATHAN FRANZEN
Eis aqui uma recordação. Numa nublada manhã de fevereiro de 1996, recebi pelo correio um pacote do Valentine’s Day enviado por minha mãe, de Saint Louis, que continha um romântico cartão cor-de-rosa, duas barras grandes de Mr. Goodbar, um coraçãozinho vermelho e barato pendurado num cordão e uma cópia do relatório do neuropatologista sobre a autópsia do cérebro do meu pai.
Lembro o brilho da luz daquela acinzentada manhã de inverno. Lembro ter deixado na sala o chocolate, o cartão e o enfeite, e levado o relatório para o quarto. Sentei para lê-lo. O cérebro (começava assim) pesava 1 255 gramas e mostrava atrofia parassagital com alargamento sulcal. Lembro de ter convertido gramas em libras e libras num pedaço de carne embrulhado naquelas embalagens de supermercado. Lembro ter enfiado o relatório no envelope sem lê-lo até o fim.
Alguns anos antes de morrer, meu pai participara de uma pesquisa sobre memória e envelhecimento patrocinada pela Universidade de Washington, que oferecia, como uma das vantagens, uma autópsia grátis do cérebro. Suspeito que o estudo oferecesse outros benefícios de tratamento e monitoração, o que levou minha mãe, que adora todo tipo de promoção, a insistir que meu pai se apresentasse como voluntário. Também foi provavelmente para economizar que ela aproveitou o pacote do Valentine’s Day para me mandar o resultado da autópsia. Com isso ela não precisou gastar 32 centavos de dólar com selos.
Minhas lembranças mais nítidas daquela manhã de fevereiro são visuais e espaciais: o papel amarelo do Mr. Goodbar, meu deslocamento da sala para o quarto, a luz do final da manhã de uma estação tão distante do solstício de inverno quanto da primavera. Mas estou ciente de que mesmo essas memórias não são confiáveis. De acordo com as mais recentes teorias, baseadas em muitas pesquisas psicológicas e neurológicas das últimas décadas, o cérebro não é um álbum no qual memórias são guardadas discretamente como fotografias imutáveis. Uma memória é, em vez disso, de acordo com uma frase do psicólogo Daniel L. Schacter, uma “constelação temporária” de atividade – uma certa excitação dos circuitos neurais que aglutina um conjunto de imagens sensoriais e informações semânticas numa sensação momentânea de um todo relembrado. Essas imagens e informações raras vezes são propriedade exclusiva de uma memória particular. Na realidade, mesmo enquanto minha experiência se desdobrava naquela manhã, meu cérebro se fiava em categorias preexistentes de “vermelho”, “coração” e “Mr. Goodbar”; o céu cinzento em minha janela era o mesmo de milhares de outras manhãs de inverno; e eu tinha milhões de neurônios dedicados a formar uma imagem de minha mãe – a sovinice com o correio, a ligação sentimental com os filhos, a irritação remanescente em relação a meu pai, a fantástica falta de tato etc. Minha memória daquela manhã consiste, portanto, em um conjunto de conexões neurais entre as regiões apropriadas do cérebro e uma predisposição da constelação para acender – química e eletricamente – quando qualquer parte do circuito é estimulada. Diga “Mr. Goodbar” e me peça para fazer uma livre associação, e, se eu não disser “Diane Keaton”, certamente direi “autópsia do cérebro”.
inha memória do Valentine’s Day funcionaria dessa maneira mesmo se estivesse vindo à tona pela primeira vez. Mas o fato é que eu tenho relembrado aquela manhã de fevereiro incontáveis vezes. Relatei a história a meus irmãos. Contei o Incidente da Mãe Escandalosa para os amigos que gostam desse tipo de coisa. Falei disso até, tenho vergonha de dizer, com pessoas que mal conheço. Cada sucessiva recordação e relato reforçam a constelação de imagens e conhecimentos que constituem a memória. No nível celular, segundo neurocientistas, estou fixando cada vez mais a memória, fortalecendo as conexões dendríticas entre seus componentes, estimulando a ignição daquele conjunto específico de sinapses. Uma das grandes virtudes adaptativas do nosso cérebro, a característica que faz nossa massa cinzenta muito mais inteligente que qualquer máquina já inventada (o confuso HD do meu laptop ou uma World Wide Web que insiste em me lembrar, nos mínimos detalhes, de um site da série Beverly Hills 90210 atualizado pela última vez em 20 de novembro de 1998), é nossa capacidade de esquecer quase tudo o que acontece conosco. Guardo memórias basicamente genéricas do passado (um ano passado na Espanha; várias idas a restaurantes indianos na East Sixth Street), mas relativamente poucas lembranças de episódios específicos. Tendo a revisitar essas lembranças retidas e, portanto, fortalecê-las. Elas se tornam literalmente – morfológica e eletroquimicamente – parte da arquitetura do meu cérebro.
Esse modelo de memória, que esbocei aqui num resumo de leigo, estimula o cientista amador que há em mim. Ele parece verdadeiro para a imprecisão e a riqueza das minhas próprias memórias, e inspira admiração com sua imagem de redes neurais que se coordenam sem esforço, de maneira maciçamente paralela, para criar minha percepção espectral e meu sentido extraordinariamente vigoroso de individualidade. Eu o acho adorável e pós-moderno. O cérebro humano é uma rede de centenas de bilhões de neurônios, talvez até 2 trilhões, com trilhões de axônios e dendritos trocando quatrilhões de mensagens em pelo menos cinquenta diferentes transmissores químicos. O órgão com o qual observamos e apreendemos o universo é, sem dúvida, o mais complexo objeto que conhecemos.
E ainda assim é também uma massa informe de carne. Em algum momento, talvez mais tarde naquele mesmo Valentine’s Day, forcei-me a ler até o fim o relatório patológico. Havia uma “Descrição Microscópica” do cérebro do meu pai:
Seções dos córtices cerebrais frontal, parietal, occipital e temporal revelaram várias placas senis, de um tipo proeminentemente difuso, com mínima quantidade de emaranhados neurofibrilares. Corpos de Lewy foram facilmente detectados no material corado com H&E. A amídala demonstrou placas, emaranhados ocasionais e discreta perda de neurônios.
Na nota que havíamos publicado na imprensa local nove meses antes, minha mãe insistiu que disséssemos que meu pai tinha morrido “depois de uma longa doença”. Ela gostava da formalidade e das reticências da frase, mas era difícil não perceber também sua queixa, a ênfase em longa. A identificação de placas senis no cérebro do meu pai serviu para confirmar, como só uma autópsia poderia fazer, o fato com o qual ela lutou diariamente por muitos anos: como milhões de outros americanos, meu pai tivera o mal de Alzheimer.
Era essa a sua doença. Era essa também, poderíamos argumentar, a sua história. Mas deixe-me contá-la.
Alzheimer é um caso clássico de doença com “início traiçoeiro”. Uma vez que até pessoas saudáveis se tornam mais esquecidas à medida que envelhecem, não há como identificar a primeira memória vitimada pela doença. O problema foi especialmente exasperante no caso do meu pai, que não apenas era depressivo, reservado e ligeiramente surdo, mas também tomava remédios fortes para outras enfermidades. Por muito tempo foi possível superar uma série de dificuldades, de seus non sequiturs à deficiência auditiva, do esquecimento à depressão, das alucinações aos seus remédios; e nós as superamos.
Minhas memórias dos anos iniciais do declínio de meu pai são vívidas, mas não sobre ele. Na realidade, espanta-me que eu seja tão pródigo em minhas próprias memórias e que meus pais ocupem uma posição periférica nelas. Mas eu vivia longe de casa naqueles anos. Minha informação vinha sobretudo das queixas de minha mãe sobre meu pai, e eu ouvia essas reclamações com ceticismo; ela se lamentou comigo durante quase toda a minha vida.
O casamento dos meus pais, digo sem medo de errar, não chegou a ser feliz. Eles ficaram juntos em nome das crianças e por não acreditar na esperança ilusória de que o divórcio os faria mais felizes. Enquanto meu pai trabalhou, eles desfrutaram autonomia em seus respectivos domínios da casa e do local de trabalho, mas depois que ele se aposentou, em 1981, aos 66 anos, os dois começaram a encenar, 24 horas por dia, Entre Quatro Paredes, na casa confortavelmente mobiliada de subúrbio. Eu chegava para uma breve visita como se fosse uma força de paz da ONU à qual cada lado apresentava ardentemente seu argumento contra o outro.
Ao contrário de minha mãe, que foi hospitalizada umas trinta vezes na vida, meu pai gozou de uma saúde perfeita até se aposentar. Seus pais e tios tinham vivido até os 80, 90 anos, e ele, Earl Franzen, tinha a expectativa de chegar aos 90 “para ver”, como gostava de dizer, “como as coisas iriam ficar”. (Lear, anagrama de seu nome, imaginou seus últimos anos em termos semelhantes: ficaria ouvindo as “notícias da corte” com Cordélia, para saber “quem perde e quem ganha, quem está dentro e quem está fora”.) Meu pai não tinha hobbies e seus poucos prazeres se limitavam às refeições, aos filhos e ao jogo de bridge, mas tinha um interesse narrativo na vida. Assistia a quantidades inacreditáveis de noticiários de tevê. Sua ambição para quando envelhecesse era acompanhar, por quanto tempo fosse possível, os desdobramentos das histórias da nação e de seus filhos.
A passividade de sua ambição, a mesmice de seus dias, tendia a torná-lo invisível para mim. Desde os primeiros anos de seu declínio mental uma cena ficou gravada em minha memória: o esforço em vão que ele fazia para calcular a gorjeta nos restaurantes.
Felizmente, minha mãe escrevia cartas muito bem. A passividade de meu pai, que eu considerava lamentável, mas não da minha conta, era fonte de decepção para ela. No outono de 1989 – uma época em que, de acordo com suas cartas, meu pai ainda jogava golfe e fazia consertos de alguma envergadura em casa –, os termos de suas queixas continuavam estritamente pessoais:
É extremamente difícil viver com alguém tão infeliz quando a gente sabe que é a causa principal dessa infelicidade. Décadas atrás, quando Papai me disse que não acreditava no amor (que sexo é uma “armadilha”) e que não tinha nascido para ser “feliz”, eu deveria ter sido esperta o bastante para perceber que não havia esperança de uma relação satisfatória para mim. Mas eu estava atarefada e envolvida com meus filhos e amigos, e acho que disse a mim mesma, como Scarlett O’Hara, que iria “me preocupar com isso amanhã”.
Essa carta data de um período durante o qual o teatro de guerra dos meus pais se fixara no tema da deficiência auditiva dele. Minha mãe argumentava que era falta de consideração ele não usar um aparelho para surdez; meu pai reclamava que era falta de consideração as pessoas não “falarem mais alto”. A batalha terminou com uma vitória de Pirro de minha mãe: ele comprou um aparelho, mas se recusava a usá-lo. Mais uma vez, minha mãe construiu uma história moral sobre sua “teimosia”, “vaidade” e “derrotismo”; mas é difícil não suspeitar, em retrospecto, que seu distúrbio auditivo já estivesse servindo para camuflar um transtorno mais sério.
Uma carta de janeiro de 1990 traz o primeiro registro escrito de minha mãe sobre esse problema:
Na semana passada, um dia ele não tomou o remédio do café da manhã para poder fazer o teste de capacidade motora na Universidade de Washington, onde participa da pesquisa sobre Memória e Envelhecimento. Naquela noite eu acordei com o barulho do barbeador elétrico, olhei o relógio e ele estava no banheiro se barbeando às duas e meia da madrugada.
Em poucos meses meu pai estava cometendo tantos erros que minha mãe teve que pensar em outras explicações:
Ou ele está estressado ou não está se concentrando ou está tendo alguma deterioração mental, mas o fato é que alguns incidentes nos últimos tempos realmente me preocuparam. Ele sempre deixa o carro com a porta aberta e as luzes acesas, e por duas vezes em uma semana tivemos que chamar a seguradora para recarregar a bateria (agora afixei uns avisos na garagem que aparentemente estão ajudando). [...] Realmente não gosto da ideia de deixá-lo sozinho em casa por muito tempo.
O temor de minha mãe de deixá-lo sozinho aumentou ao longo daquele ano. Seu joelho direito estava desgastado e, como já pusera um pino de aço na perna devido a uma fratura anterior, ela se defrontava com a perspectiva de se submeter a uma cirurgia complicada seguida de um prolongado período de recuperação e reabilitação. Suas cartas do final de 1990 e início de 1991 remoem a dúvida angustiante sobre ir adiante com a cirurgia e, em caso afirmativo, como lidar com meu pai.
Se ele passasse a noite sozinho em casa enquanto eu estivesse no hospital, eu ficaria muito nervosa por não estar por perto quando ele deixasse as torneiras abertas, esquecesse o forno ligado, as luzes acesas etc. Eu confirmo e reconfirmo a maioria das coisas o máximo que posso, mas mesmo assim nossa vida está uma bagunça, e o pior é seu ressentimento por causa da minha intrusão – “Não se meta em meus negócios!!!” Ele não aceita ou não percebe que eu só quero ajudar, e isso é o pior de tudo para mim.
Naquela ocasião, eu tinha acabado de terminar meu segundo romance, e então me ofereci para ficar com meu pai enquanto minha mãe fosse operada. Para não ferir o orgulho dele, nós dois combinamos fazer de conta que eu estaria lá por ela, e não por ele. O esquisito, no entanto, é que isso tinha um fundo de verdade. A caracterização que minha mãe fazia da incapacidade de meu pai era constrangedora, mas não menos do que a imagem de alarmista rabugenta que meu pai pintava dela. Fui para Saint Louis porque, para ela, a incapacidade dele era absolutamente real; uma vez lá, me comportei como se, para mim, não fosse absolutamente dessa forma.
Bem como minha mãe temia, ela ficou hospitalizada por quase cinco semanas. É estranho que, embora nunca tivesse morado sozinho com meu pai por tanto tempo e nunca mais fosse morar, não me lembro de quase nada específico sobre a estada com ele; fiquei com a impressão genérica de que talvez ele estivesse meio quieto, mas, fora isso, completamente normal. Aqui, poderíamos pensar que há uma contradição com os relatos anteriores de minha mãe. E no entanto não tenho lembrança de ter ficado incomodado com a contradição. Tenho a cópia de uma carta que escrevi de Saint Louis para um amigo. Nela, menciono que a medicação de meu pai tinha sido ajustada e que agora estava tudo bem.
Talvez eu quisesse que isso fosse verdade? Sim, de certa maneira. Mas uma das características básicas do cérebro é sua capacidade de construir um todo a partir de fragmentos. Embora tenhamos um ponto cego literal em nosso campo de visão, onde o nervo ótico se liga à retina, o cérebro inexoravelmente registra um mundo inconsútil ao nosso redor. Captamos um começo de palavra e a ouvimos inteira. Vemos rostos expressivos em tapeçarias com motivos florais; estamos constantemente preenchendo lacunas. Da mesma maneira, acho que eu estava inclinado a dar algum sentido aos silêncios e às ausências mentais de meu pai, insistindo em vê-lo como o velho e bom Earl Franzen. Ainda precisava que ele fosse um personagem na minha história sobre mim mesmo. Na carta ao meu amigo, descrevi um ensaio matinal da Sinfônica de Saint Louis, ao qual minha mãe insistiu para que meu pai e eu fôssemos só para ela não desperdiçar as entradas gratuitas que conseguira. Depois da primeira metade da sessão, na qual a muito jovem Midori martelou o Concerto para violino de Sibelius, meu pai ficou irrequieto na poltrona com uma aflita agitação geriátrica. “Então”, disse, “vamos embora.” Eu sabia que de nada adiantaria sugerir que ficássemos para ouvir na sequência uma sinfonia de Charles Ives, mas eu o odiava pelo filistinismo que identificava nele. Na volta para casa, ele fez um comentário sobre Midori e Sibelius. “Não entendo essa música”, disse. “O que eles fazem – decoram?”
Mais tarde naquela primavera, meu pai teve o diagnóstico de câncer de próstata, um tumor pequeno e de crescimento lento. Os médicos recomendaram que não fizesse tratamento, mas ele insistiu em se submeter a sessões de radiação. Mais ou menos ciente de seu próprio estado mental, meu pai ficou apavorado que algo estivesse terrivelmente errado com ele: que, afinal, não chegaria aos 90 anos. Minha mãe, cujo joelho continuava a apresentar sangramentos internos seis meses depois da operação, não tinha muita paciência para o que considerava hipocondria dele. Em setembro de 1991, ela escreveu:
Estou aliviada que Papai tenha começado a terapia de radiação. Com isso, ele é forçado a sair de casa todos os dias [inserir, aqui, um sorriso de satisfação] – um grande avanço. Ele chegou a um ponto em que estava tão nervoso, tão preocupado, tão deprimido que eu sabia que ele tinha que tomar uma decisão. Na verdade, está tão sedentário (fica feliz por não fazer nada) que tem tempo de sobra para se preocupar e pensar nele mesmo – ele precisa se distrair!... Cada vez mais estou convencida de que as maiores qualidades que podemos ter são (1) uma atitude positiva e (2) senso de humor – queria tanto que Papai fosse assim.
Seguiram-se alguns meses de relativo otimismo. O câncer foi erradicado, o joelho da minha mãe finalmente melhorou e sua confiança natural voltou a se manifestar nas cartas. Contou que meu pai tinha obtido o primeiro lugar num campeonato de bridge: “Depois que passou aquele estado confuso, e com um pouco mais de arrojo no jogo, ele até que está indo bem, e isso é a única coisa que realmente o distrai (a única coisa que o deixa acordado!).” Mas a ansiedade do meu pai sobre sua saúde não diminuiu; tinha dores de estômago e estava convencido de que eram causadas por câncer. Aos poucos, o foco da história que minha mãe estava me contando migrou do aspecto pessoal e moral para o psiquiátrico. “Nos últimos seis meses perdemos tantos amigos que ficamos abalados – e isso, tenho certeza, se deveu em parte à ansiedade e à depressão de Papai”, escreveu em fevereiro de 1992. A carta continuava:
O médico de Papai, o dr. Rouse, concluiu o que eu já tinha percebido sobre a dor de estômago de Papai (ele descartou todas as possibilidades clínicas). Papai é (1) ansioso demais, (2) está muito deprimido e eu espero que o dr. Rouse dê a ele um antidepressivo. Eu sei que o caso dele requer uma ajuda... Houve coisas perturbadoras e estressantes em nossas vidas no último ano, sei disso muito bem, mas a condição mental de Papai o está afetando fisicamente, e se ele não procurar uma terapia (sugerida pelo dr. Weiss) talvez aceite as pílulas, ou o que quer que seja, para ansiedade e depressão.
Durante um tempo, as palavras “ansiedade e depressão” estavam sempre presentes nas cartas. Por um curto período, o Prozac pareceu animar um pouco meu pai, mas os efeitos não duraram muito. Finalmente, em julho de 1992, para minha surpresa, ele concordou em se consultar com um psiquiatra.
Meu pai sempre foi extremamente cético em relação à psiquiatria. Encarava a terapia como uma invasão de privacidade, a saúde mental como questão de autodisciplina, e a insistência de minha mãe para que “falasse com alguém” como um ato de agressão – pequenas granadas de culpa pela infelicidade deles como casal. O fato de ter voluntariamente ido ao psiquiatra dava a medida de seu desespero.
Em outubro, quando passei por Saint Louis a caminho da Itália, perguntei-lhe sobre as sessões com o médico. Ele fez um gesto com as mãos indicando que eram inúteis. “Ele é muito competente”, disse. “Mas acho que desistiu de mim.”
A ideia de que alguém desistisse de meu pai era algo que eu não podia suportar. Da Itália enviei ao psiquiatra uma carta de três páginas pedindo que reconsiderasse a decisão, mas enquanto eu escrevia a situação em casa se deteriorava. “Odeio ter que te contar isso”, minha mãe escreveu numa carta enviada por fax para a Itália, “mas Papai piorou muito. Um remédio receitado por um urologista para um problema urinário, em combinação com o medicamento para depressão e ansiedade, provocou alucinações etc., e foi horrível.” Num fim de semana com meu tio Erv, em Indiana, meu pai, fora de seu ambiente, viveu uma noite insana que culminou com meu tio gritando com ele: “Earl, pelo amor de Deus, sou seu irmão, Erv, nós dormíamos na mesma cama!” De volta a Saint Louis, meu pai começou a destratar uma senhora aposentada, a sra. Pryble, que minha mãe contratara para ficar com ele duas manhãs por semana enquanto ela se desincumbia de pequenos afazeres. Ele não atinava por que alguém deveria cuidar dele, e mesmo que achasse que precisava de cuidados entendia que essa não seria a tarefa de uma estranha, mas de sua mulher. Tinha se tornado uma figura que lembrava aqueles andarilhos que cochilam de dia e causam tumulto durante a madrugada.
O que se seguiu foi uma melancólica visita de férias em que minha mulher e eu finalmente intercedemos e pusemos minha mãe em contato com uma assistente social geriátrica, e minha mãe pediu encarecidamente que minha mulher e eu arranjássemos atividades para meu pai durante o dia a fim de que ele conseguisse dormir à noite sem incidentes psicóticos; e meu pai tinha o olhar perdido diante da lareira ou contava histórias sinistras de sua infância, enquanto minha mãe choramingava a respeito da despesa, uma quantia proibitiva, das sessões com a assistente social. Mas, mesmo nessa época, até onde me lembro, ninguém nunca falou em “demência”. Em todas as cartas que minha mãe me escreveu, a palavra “Alzheimer” apareceu uma única vez, em referência a uma alemã idosa para quem eu trabalhei quando adolescente.
Lembro-me de minha desconfiança e aborrecimento, quinze anos atrás, quando o termo “mal de Alzheimer” começou a ser popularizado. Parecia-me mais um exemplo da medicalização da experiência humana, o mais recente verbete do infindável glossário da vitimização. Quando minha mãe me escreveu sobre minha antiga patroa, respondi: “Você está descrevendo uma pessoa que se parece com a velha Erika, só que um pouco pior, e isso não é exatamente o mal de Alzheimer, certo? Está na moda falar em Alzheimer. Todo mês perco uns minutos me lamentando pelo fato de uma doença mental comum ser diagnosticada equivocadamente como mal de Alzheimer.”
Olhando em retrospecto, hoje, quando perco uns minutos todo mês me lamentando pelo hipócrita de 30 anos que eu era, percebo minha relutância em usar a expressão Alzheimer para meu pai como forma de proteger a especificidade de Earl Franzen da generalidade da moléstia assim chamada. Doenças têm sintomas; sintomas remetem às bases orgânicas de tudo o que somos. Remetem ao cérebro como um pedaço de carne. E, em vez de reconhecer isso, que, sim, o cérebro é carne, tenho a visão obliterada por um ponto cego onde insiro histórias que enfatizam aspectos espirituais da individualidade. Ver meu atormentado pai como um conjunto de sintomas orgânicos seria também um convite para compreender o saudável Earl Franzen (e o meu saudável eu) em termos sintomáticos – reduzindo nossas tão caras personalidades a umconjunto finito de coordenadas neuroquímicas. Quem iria querer uma história de vida assim?
Mesmo agora, fico um pouco incomodado quando reúno informações sobre o mal de Alzheimer. Por exemplo, a leitura do livro The Forgetting: Alzheimer’s: Portrait of an Epidemic, de David Shenk, é um lembrete de que quando meu pai se perdia pela vizinhança, ou se esquecia de dar a descarga no banheiro, ele apresentava sintomas idênticos àqueles milhões de pessoas igualmente atormentadas. É possível que tal companhia represente algum conforto, mas lamento que certos erros do meu pai fossem esvaziados de significado pessoal, como a confusão entre minha mãe e a mãe dela, que na época me chamava a atenção como algo singular e órfico do qual eu derivava toda sorte de novos insights relevantes sobre o casamento de meus pais. Minha noção sobre individualidade particular se mostrou ilusória.
A demência senil existe desde que se desenvolveram os meios de registrá-la. Enquanto as pessoas viviam, na média, pouco tempo, e a velhice era algo raro, a senilidade era considerada um subproduto do envelhecimento – talvez resultado da esclerose das artérias cerebrais. O jovem neuropatologista alemão Alois Alzheimer acreditava estar testemunhando uma variedade inteiramente nova de doenças mentais quando, em 1901, passou a atender em sua clínica uma mulher de 51 anos, Auguste D., que apresentava bizarra variação de humor e grave perda de memória, e que, nos exames iniciais do dr. Alzheimer, deu respostas problemáticas a estas questões:
– Qual o seu nome?
– Auguste.
– Sobrenome?
– Auguste.
– Qual o nome do seu marido?
– Auguste.
Quando Auguste morreu numa instituição, quatro anos mais tarde, Alzheimer se valeu dos avanços então recentes em microscopia e coloração de tecidos e descobriu, em imagens do tecido do cérebro dela, a incrível dupla patologia da doença: incontáveis bolas de aparência grudenta, as “placas”, e inúmeros neurônios mergulhados em “emaranhados” neurofibrilares. Os achados de Alzheimer despertaram o interesse de seu protetor e decano da psiquiatria alemã, Emil Kraepelin, que estava engajado numa feroz disputa científica com Sigmund Freud sobre as teorias psicoliterárias deste último em relação às doenças mentais. Para Kraepelin, as placas de Alzheimer e os emaranhados davam sustentação clínica à sua alegação de que a doença mental é fundamentalmente orgânica. Em seu Handbook of Psychiatry, chamou a moléstia de Auguste D. de Morbus Alzheimer.
Seis décadas depois da autópsia de Auguste D. realizada por Alois Alzheimer, mesmo com os avanços da medicina preventiva nos países desenvolvidos, que aumentaram a expectativa de vida em quinze anos, o mal de Alzheimer ainda era visto como algo tão raro na medicina quanto o mal de Huntington. David Shenk conta a história de uma neuropatologista americana chamada Meta Neumann que, no início dos anos 50, realizou autópsias nos cérebros de 210 vítimas de demência senil e encontrou poucas artérias esclerosadas e muitas placas e emaranhados. Aí estava a evidência pétrea de que o mal de Alzheimer era muito mais comum do que se imaginava; mas o trabalho de Neumann aparentemente não sensibilizou ninguém. “Acharam que ela estava falando bobagem”, disse seu marido.
A comunidade científica simplesmente não estava pronta para considerar que a demência senil pudesse ser mais que uma consequência natural do envelhecimento. No início dos anos 50 não havia a categoria “idosos”, as comunidades de aposentados do Cinturão do Sol no sul dos Estados Unidos, a Associação dos AposentadosAmericanos, a tradição dos restaurantes baratos de servir o jantar mais cedo; e o pensamento científico refletia essas realidades sociais. Só nos anos 70, as condições se tornariam maduras para a reinterpretação da demência senil. Nessa época, como diz Shenk, “tantas pessoas estavam vivendo mais tempo que a senilidade não parecia mais algo normal ou aceitável”. O Congresso aprovou a lei de pesquisa sobre envelhecimento em 1974 e criou o Instituto Nacional do Envelhecimento, cujos recursos logo se multiplicaram. No final dos anos 80, no auge da minha implicância com o termo clínico e sua repentina ubiquidade, o mal de Alzheimer já era considerado tão importante, em termos médicos e sociais, quanto as doenças coronarianas ou o câncer – e os fundos de financiamento para as pesquisas demonstravam isso.
O que aconteceu com o mal de Alzheimer nos anos 70 e 80 foi simplesmente uma mudança paradigmática do diagnóstico. O número de novos casos realmente disparava. Enquanto cada vez menos pessoas morriam de ataque cardíaco ou de infecções, mais e mais indivíduos sobreviviam para desenvolver alguma demência. Pacientes de Alzheimer em casas de repouso vivem tanto quanto outros pacientes, a um custo individual de pelo menos 40 mil dólares por ano; até serem internados, eles causam transtornos na vida dos familiares encarregados de cuidar deles. O número de americanos com a doença já é de 5 milhões e pode aumentar para 15 milhões em 2050.
Uma vez que muito dinheiro é despendido em doenças crônicas, os laboratórios médicos investem pesadamente em pesquisas próprias para obter drogas para o mal de Alzheimer, e também financiam pesquisas de cientistas. Mas, uma vez que o conhecimento sobre a doença ainda é obscuro (o cérebro não é um local muito mais acessível do que o centro da Terra ou os limites do universo), ninguém tem certeza sobre quais caminhos levariam a um tratamento efetivo da doença. O aparecimento precoce do mal de Alzheimer em geral está associado à genética, mas a doença em idosos não se deve a um único fator. E no entanto a etiologia da doença é óbvia – tem a aparência de uma inflamação do cérebro e parece ser também um desequilíbrio neuroquímico, além de uma doença relacionada com uma deposição anormal de proteína, que às vezes ataca o coração e os rins.
Os tratamentos que estão sendo pesquisados atualmente visam a todos esses aspectos. Pessoas que tomam medicamentos para reduzir o colesterol ou anti-inflamatórios não esteroides (como aspirina e Celebra) podem ter menor risco de desenvolver o mal de Alzheimer. Aqueles que já têm a doença às vezes podem se beneficiar, durante um tempo, de remédios que elevam o nível de acetilcolina ou de antioxidantes como a vitamina E. Há uma intensa disputa entre os laboratórios pela primazia na obtenção de inibidores de enzimas que eliminem as proteínas anômalas. No front imunológico, pesquisadores da Elan Pharmaceuticals apresentaram a ideia aparentemente estranha de uma vacina para o mal de Alzheimer – que ensina o sistema imunológico a produzir anticorpos que atacam e destroem as placas amiloides no cérebro –, e descobriram que a vacina não apenas previne a formação de placas em camundongos transgênicos, mas também reverte a deterioração mental dos animais já afetados por elas[1]. No geral, a sensação é que, se temos menos de 50 anos, podemos ter uma chance razoável de contar com um medicamento eficiente quando precisarmos dele. Mas nunca se sabe: vinte anos atrás, muitos cientistas que pesquisavam o câncer previam a cura da doença em vinte anos.
David Shenk, que com menos de 50 anos está numa posição confortável, argumenta em The Forgetting que a cura da demência senil pode não ser uma bênção completa. Afirma, por exemplo, que uma notável peculiaridade da doença é que suas vítimas em geral sofrem cada vez menos com o passar do tempo. Lidar com um paciente de Alzheimer exige repetições estafantes exatamente porque ele perdeu o equipamento cerebral para experimentar qualquer coisa como repetição. Shenk cita pacientes que falam em “delícias do esquecimento” e que relatam ganhos em prazeres sensoriais, pois não têm passado e vivem num eterno Agora. Se nossa memória imediata está comprometida, não nos lembramos, ao nos inclinarmos para sentir o perfume de uma rosa, que nos inclinamos para sentir o perfume da mesma rosa a manhã inteira.
Como o psiquiatra Barry Reisberg observou pela primeira vez há vinte anos, o declínio de um paciente de Alzheimer espelha o avesso do desenvolvimento neurológico de uma criança. As primeiras habilidades que uma criança desenvolve – levantar a cabeça (entre 1 e 3 meses), sorrir (2 a 4 meses), sentar-se sem ajuda (6 a 10 meses) – são as últimas habilidades que um paciente de Alzheimer perde. O desenvolvimento do cérebro na criança é consolidado pelo processo chamado de mielinização, em que as conexões axônicas entre os neurônios são gradualmente fortalecidas pelos revestimentos da substância gordurosa mielina. Aparentemente, uma vez que as últimas regiões do cérebro da criança que amadurecem são as menos mielinizadas, elas são as regiões mais vulneráveis ao mal de Alzheimer. O hipocampo, que processa as memórias imediatas em memórias remotas, é muito lento em mielinizar. É por isso que somos incapazes de formar memórias episódicas permanentes antes de 3 ou 4 anos de idade, e é por isso que o hipocampo é onde as placas e os emaranhados de Alzheimer surgem em primeiro lugar. Daí a aparição espectral de pacientes em estágios intermediários que continuam capazes de andar e se alimentar mesmo que esqueçam tudo a cada hora. A criança interior se exterioriza. Neurologicamente, estamos diante de uma criança de 1 ano.
Embora Shenk tente corajosamente ver uma dádiva no infantilismo dos pacientes de Alzheimer, livres que estão de responsabilidades e focados no Agora, tenho certeza de que a última coisa que meu pai queria era tornar-se criança. As histórias que ele me contava de sua infância, no norte de Minnesota, eram sobretudo (condizentes com as lembranças de um depressivo) terríveis: pai violento, mãe injusta, tarefas infindáveis, ambientes de pobreza, traições familiares, acidentes medonhos. Ele me disse mais de uma vez, depois de se aposentar, que seu grande prazer na vida tinha sido trabalhar, já adulto, na companhia de homens que valorizavam suas habilidades. Meu pai levava uma vida totalmente privada, e para ele privacidade queria dizer manter o vergonhoso conteúdo de sua vida interior longe das vistas do público. Poderia ter havido pior doença para ele que o mal de Alzheimer? Em seus estágios iniciais, a doença dissolvia as conexões pessoais que o haviam resgatado do fundo do poço de seu isolamento depressivo. Nos últimos estágios, tirou dele a proteção da maturidade, os meios de esconder a criança dentro de si. Eu preferiria que ele tivesse tido um ataque cardíaco.
Ainda assim, por mais frágil que seja a defesa de Shenk dos aspectos mais auspiciosos do mal de Alzheimer, é difícil descartar o ponto central de seu argumento: a senilidade não apenas apaga o significado das coisas, como também é fonte de significado. Para minha mãe, os danos do Alzheimer amplificaram e reverteram os duradouros padrões de seu casamento. Meu pai sempre se recusara a se abrir com ela, e agora, cada vez mais, ele não podia mais se abrir. Para minha mãe, ele continuou a ser o mesmo Earl Franzen que cochilava no escritório sem ouvi-la. Ela, paradoxalmente, foi quem aos poucos perdeu sua individualidade; morava com um homem que a confundia com sua mãe, esquecido de tudo o que um dia soube sobre ela, e que finalmente deixou de pronunciar seu nome. Ele, que sempre insistira em ser o cabeça do casal, o tomador de decisões, o adulto protetor da mulher infantilizada, não podia evitar se comportar como uma criança. Agora, as explosões inconvenientes eram dele, e não de minha mãe. Agora, ela o levava pela cidade da mesma maneira que um dia fez comigo e meus irmãos. Tarefa por tarefa, ela assumiu o controle da vida dele. E, portanto, embora a “longa doença” de meu pai fosse um pesado fardo e um desapontamento, era também uma oportunidade para que ela aos poucos conquistasse uma autonomia que nunca teve e ajustasse as contas com o passado.
Quanto a mim, uma vez que aceitei o alcance da doença, a simples duração do Alzheimer me forçou a um contato mais próximo com minha mãe, que foi inesperadamente bem-vindo. Aprendi, e isso talvez não tivesse acontecido se a situação fosse outra, que podia contar de verdade com meus irmãos e que eles podiam contar comigo. E, o que é estranho, embora sempre tivesse prezado minha inteligência, sanidade e consciência, descobri que observar meu pai perder os três atributos me fez ter menos medo de que eu mesmo um dia viesse a perdê-los. Tornei-me no geral um pouco menos medroso. Uma porta ruim se abriu, e descobri que era capaz de atravessá-la.
porta em questão estava no 4º andar do Barnes Hospital, em Saint Louis. Cerca de seis semanas depois que minha mulher e eu pusemos minha mãe em contato com a assistente social e voltamos para a costa leste, meu irmão mais velho e os médicos de meu pai o convenceram a ir ao hospital para fazer testes. A ideia era limpar sua corrente sanguínea de todos os remédios para saber com o que realmente estavam lidando. Minha mãe o ajudou a dar entrada no hospital e passou a tarde inteira com ele, acomodando-o no quarto. Ele estava do mesmo jeito de sempre, meio ausente, mas naquela noite, ao sair para jantar em casa, ela recebeu telefonemas do hospital, primeiro do meu pai, que exigia a presença dela para retirá-lo “deste hotel”, e depois das enfermeiras, que relataram que ele estava ficando agressivo. Quando voltou ao hospital pela manhã, ela o encontrou fora de si – delirando e profundamente desorientado.
Viajei de novo para Saint Louis uma semana mais tarde. Minha mãe me levou direto do aeroporto para o hospital. Enquanto ela conversava com as enfermeiras, fui ao quarto do meu pai e o vi na cama, bem desperto. Eu disse oi. Ele fez um gesto frenético para que eu me calasse e me chamou para perto, indicando o travesseiro. Inclinei-me em sua direção e ele me pediu, num sussurro, para falar baixo porque “eles” estavam “escutando”. Perguntei quem eram “eles”. Ele não disse nada, mas seus olhos esquadrinharam o quarto com medo, como se tivesse visto “eles” em todo lugar e estivesse perplexo porque “eles” tinham desaparecido. Quando minha mãe surgiu na porta, confidenciou-me, numa voz ainda mais baixa: “Acho que eles pegaram sua mãe.”
Minhas lembranças da semana seguinte são embaçadas, salvo por dois episódios, daqueles que mudam uma vida. Eu ia ao hospital todos os dias e ficava sentado com meu pai por quantas horas aguentasse. Em nenhum momento ele encadeou duas sentenças com coerência. Em retrospecto, a lembrança que me parece mais significativa é bastante peculiar. Ela é iluminada por uma luzinha artificial de efeito onírico, se passa num quarto de hospital cuja disposição dos móveis amontoados não me é familiar, e me volta sempre sem as referências cronológicas que em geral caracterizam minhas memórias. Não tenho nem certeza de que essa lembrança data da primeira semana em que vi meu pai no hospital. E no entanto sei que não estou me lembrando de um sonho. Todas as memórias, dizem os neurocientistas, são memórias de memórias, embora em geral não se tenha essa sensação. Pois aqui está uma exceção. Lembro-me da lembrança: meu pai na cama, minha mãe a seu lado, eu em pé perto da porta. Estávamos tendo uma difícil conversa em família, provavelmente sobre para onde levar meu pai depois que ele saísse do hospital. Uma conversa que meu pai, mesmo sem entender quase nada, está odiando. Finalmente, como se estivesse cheio daquele absurdo, ele grita exaltado: “Eu sempre amei sua mãe. Sempre.” E minha mãe cobre o rosto com as mãos e chora.
Essa foi a única vez que ouvi meu pai dizer que a amava. Tenho certeza de que a memória é legítima porque o episódio me pareceu imensamente significativo mesmo na época, e então eu o descrevi para minha mulher e meus irmãos e incorporei a narrativa na história que contava a mim mesmo sobre meus pais. Anos mais tarde, quando minha mãe insistiu que meu pai nunca dissera que a amava, nem uma única vez, perguntei se ela se lembrava daquele dia no hospital. Repeti o que ele havia dito, e ela meneou a cabeça em dúvida. “Talvez”, disse. “Talvez ele tenha dito que me amava. Não me lembro.”
eus irmãos e eu nos revezamos em ir a Saint Louis a cada poucos meses. Meu pai sempre me recebeu com alegria. Sua vida na clínica parecia um interminável e complicado sonho habitado por fantasias do passado e por outros internos com doenças no cérebro; as enfermeiras, menos que personagens do sonho, eram verdadeiras invasoras. Ao contrário dos pacientes, que às vezes choramingavam como bebês e em seguida sorriam quando lhes davam sorvetes, nunca vi meu pai chorar, e tomava sorvete com o prazer de um adulto. Ele me fez vários acenos significativos com a cabeça e sorria com melancolia enquanto me contava fragmentos de uma história sem sentido, que eu ouvia em silêncio, concordando, como se estivesse entendendo. O assunto que consistentemente se aproximava de um discurso coerente era seu desejo de ser levado “deste hotel” e sua incapacidade de compreender por que não podia viver num pequeno apartamento e deixar que minha mãe cuidasse dele.
No Dia de Ação de Graças daquele ano, minha mãe, minha mulher e eu o tiramos da clínica e o levamos para casa numa cadeira de rodas em minha caminhonete Volvo. Ele não havia estado lá desde que deixara de morar na casa, dez meses antes. Se minha mãe esperava que ele demonstrasse um prazer gratificante, ficou desapontada; àquela altura, uma mudança de endereço não fazia mais diferença para meu pai do que para uma criança de 1 ano de idade. Sentamo-nos em frente à lareira e, sem pensar, levados apenas por um lamentável hábito, fotografamos um homem que, se não soubesse mais nada, parecia saber que projetava uma figura triste demais para aparecer em fotografias. Hoje tais imagens me parecem horríveis: meu pai na cadeira de rodas como uma marionete sem cordas, o olhar fixo e alienado, a boca entreaberta, os óculos manchados pelo flash e quase caindo do nariz; o rosto de minha mãe, a máscara de um desespero razoavelmente contido; e minha mulher e eu exibindo sorrisos grotescos ao nos aproximarmos para tocar meu pai. Durante o jantar minha mãe protegeu meu pai com uma toalha de banho e cortou sua porção de peru em pequenos pedaços. Ela não parava de lhe perguntar se ele estava feliz por jantar em casa no Dia de Ação de Graças. Ele respondia com silêncio, com um movimento de olhos, às vezes com um ligeiro arquear de ombros. Meus irmãos telefonaram para desejar um feliz Dia de Ação de Graças; e aí, repentinamente, ele sorriu e, com uma voz cordial, respondeu a perguntas simples e lhes agradeceu por terem ligado.
Essa parte da noite foi tipicamente de Alzheimer. Como as crianças aprendem habilidades sociais muito cedo, uma capacidade para gestos de cortesia e frases de uma delicadeza vaga sobrevivem em muitos pacientes de Alzheimer bem depois de já terem perdido a memória. Não foi assim tão digno de nota que meu pai tivesse sido (mais ou menos) capaz de trocar palavras com meus irmãos. Mas o que aconteceu em seguida, depois do jantar, do lado de fora da clínica, foi. Enquanto minha mulher corria atrás de uma cadeira geriátrica, meu pai sentou-se ao meu lado e observou o portal da instituição em que estava prestes a entrar. “Melhor não sair”, disse-me numa voz clara e forte, “do que ter que voltar.” Não era uma frase vaga; dizia respeito diretamente ao que estava acontecendo, e sugeria enfaticamente uma consciência de sua difícil situação e sua conexão com o passado e o futuro. Ele pedia para não ter que enfrentar a dor de ser de novo levado em direção à consciência e à memória. E, com certeza, na manhã seguinte ao Dia de Ação de Graças, e pelo restante de nossa visita, estava mais alienado que nunca, suas palavras eram uma embrulhada de sílabas aleatórias, seu corpo um grande mangual de agitação.
Para David Shenk, a mais importante das “janelas de significação” proporcionadas pelo mal de Alzheimer é o parcelamento da morte. Shenk equipara a doença a um prisma que refrata a morte num espectro de partes que, de outra maneira, seriam inseparáveis – morte da autonomia, morte da memória, morte da autoconsciência, morte da personalidade, morte do corpo – e endossa um dos tropos mais comuns do mal de Alzheimer: o de que a tristeza e o horror típicos da doença derivam da perda da individualidade, o que ocorre bem antes da morte do corpo.
Isso me parece correto. Quando o coração do meu pai parou de bater, eu já estava em luto por ele havia anos. E, ainda assim, quando penso em sua história, me pergunto se as várias mortes podem ser realmente separadas, e se a memória e a consciência têm, afinal, importância garantida nos domínios da individualidade. Não paro de procurar algum sentido nos dois anos que se seguiram à perda do seu suposto “eu”, e estou sempre encontrando algo.
Impressiona-me, acima de tudo, a aparente persistência de sua vontade. É impossível, para mim, não acreditar que ele se empenhava em resgatar um pouco da autodisciplina remanescente, uma reserva de força sob os sustentáculos da consciência e da memória, quando se aprumava a ponto de falar o que falou em frente à clínica. Da mesma maneira, creio que seu colapso na manhã seguinte, como acontecera na primeira noite sozinho no hospital, tenha significado o abandono dessa vontade, uma desistência, uma aceitação da loucura diante de uma emoção insuportável. Embora possamos determinar o início de seu declínio (consciência plena e sanidade) e o fim (esquecimento e morte), seu cérebro não era apenas um computador possuído de fúria assassina que o matava gradual e inexoravelmente.
Ele conseguiu se manter bem por mais tempo, acho, do que indicavam seus recursos neurônicos. Então sofreu uma deterioração mais intensa do que sua patologia previa, e escolheu ficar lá embaixo 99% do tempo. O que ele quis (nos primeiros anos, lucidez; nos últimos, não resistir à doença) era essencial para o que ele era. E o que eu quero (histórias do cérebro de meu pai que não sejam sobre um pedaço de carne) é essencial para o que escolho lembrar e narrar.
Uma das histórias que vim a contar, enquanto tentava me perdoar por minha longa cegueira sobre sua condição, é que ele estava decidido a esconder a doença e, por muito tempo, conservou suficiente força de caráter para obter tal intento. Minha mãe jurava que ele fazia isso. Ele não podia enganar a mulher com quem vivia, por mais que tentasse, mas era capaz de se dominar se algum filho estivesse na cidade ou diante das visitas, em casa. A verdadeira solução para o enigma da minha estada com ele durante a operação de minha mãe provavelmente tem menos a ver com minha cegueira do que com o esforço extra que ele fez para camuflar sua condição.
Depois daquele lamentável Dia de Ação de Graças, quando soubemos que ele nunca mais voltaria para casa, ajudei minha mãe a arrumar a escrivaninha dele. (É o tipo de liberdade que tomamos com escrivaninhas de crianças ou de mortos.) Numa das gavetas encontramos evidências de seu esforço para não esquecer. Havia um maço de tiras de papel, nas quais escreveu os endereços de seus filhos, um endereço em cada tira, o mesmo endereço em várias. Em outra estava anotada a data de nascimento de seus filhos mais velhos – “BOB 13/1/48” e “TOM 15/10/50” –, e então, tentando se lembrar do dia em que nasci (17 de agosto de 1959), apagou o mês e o dia e tentou adivinhar, com base nas datas dos meus irmãos: “JON 13/10/49.”
É de se considerar, também, o que acredito serem as últimas palavras que ele me dirigiu três meses antes de morrer. Por uns dois dias cumpri a obrigação de fazer visitas de uma hora e meia à clínica e o ouvi resmungar sobre minha mãe e especular sobre certos pequenos objetos que sempre via nas mangas de seu suéter e nos joelhos das calças. Ele não estava diferente da última manhã em que passei por lá ou quando o levei de cadeira de rodas para o quarto e lhe disse que eu iria viajar de volta para casa. Mas, quando ele elevou o rosto em direção ao meu – mais uma vez, subitamente, sua voz era clara e forte –, disse: “Obrigado por ter vindo. Gostei muito que você arranjou um tempo para me ver.”
Frases feitas? Uma abertura para sua individualidade fundamental? Parece que eu não tinha muita escolha sobre em qual versão acreditar.
Ao contar com as cartas de minha mãe para reconstruir a desintegração de meu pai, fiquei sem documentação a partir de 1992, quando ela e eu passamos a nos falar por telefone e, salvo por pequenas notas, paramos de nos escrever. A descrição da escrita como “muleta da memória”, de Platão, em Fedro, me parece totalmente acurada: eu não poderia contar uma história vívida de meu pai sem aquelas cartas. Mas, onde Platão lamenta o declínio da tradição oral e a atrofia da memória induzida pela escrita, eu, no outro extremo da Era da Palavra Escrita, fico impressionado com o vigor e a confiabilidade das palavras no papel. As cartas de minha mãe são mais verdadeiras e completas que minhas memórias autocentradas e tendenciosas; ela está mais viva para mim na frase escrita “Ele PRECISA se distrair!” do que em horas de videoteipe ou pilhas de fotografias.
O desejo de tornar perenes as histórias, registrando-as em palavras indeléveis, me parece aparentado da convicção de que somos maiores que nossa biologia. Pergunto-me se hoje nossa suscetibilidade cultural aos encantos do materialismo – nosso desejo cada vez maior de entender a psicologia como química, a identidade como genética e o comportamento como produto de exigências já saciadas do processo de evolução humana – não está, no limite, relacionada ao ressurgimento pós-moderno da oralidade e ao eclipse da palavra escrita: nossos incessantes telefonemas, nossos e-mails efêmeros, nossa devoção inabalável à telinha.
Já disse que meu pai também escrevia cartas? Quase sempre datilografadas e precedidas de um pedido de desculpas por erros ortográficos, elas não eram tão frequentes quanto as da minha mãe. Uma das últimas data de dezembro de 1987:
Esta época do ano é sempre difícil para mim. Fico constrangido com todo mundo dando presentes, e eu adoraria encontrar coisas para as pessoas, mas a falta de imaginação me impede de achar as coisas certas. Tenho medo de comprar coisas do tamanho errado ou da cor errada ou coisas de que as pessoas não precisam, e fico imaginando a chateação de ter que voltar à loja e trocar. Gosto de comprar ferramentas, mas Bob me chamou a atenção em relação a essa categoria de presente quando numa ocasião eu dei a ele um belo martelo bem balanceado e ele comentou que esse era o segundo ou terceiro martelo e que ele não precisa de mais nenhum, muito obrigado. E tem também o problema do presente da sua mãe. Ela é tão sentimental que fico condoído de não lhe dar algo refinado, mas ela tem acesso irrestrito à minha conta no banco. Falei para ela para comprar alguma coisa e dizer que fui eu que dei, assim ela poderia comentar depois do Natal: “Olha só o que eu ganhei do meu marido!” Mas ela não quer saber dessa farsa. Então eu sofro nessa época.
Em 1989, quando seu poder de concentração minguava com a crescente “ansiedade e depressão”, meu pai deixou de escrever cartas. Minha mãe e eu, portanto, ficamos surpresos por encontrar, na mesma gaveta onde ele deixara aquele maço de folhas com endereços e datas de nascimento, uma carta não enviada escrita em 22 de janeiro de 1993 – inacreditavelmente tardia, coisa de semanas antes do seu colapso final. A carta estava num envelope endereçado a meu sobrinho Nick, que, aos 6 anos, tinha começado a escrever cartas. Possivelmente, meu pai ficou com vergonha de mandar uma carta sabendo que não era totalmente coerente; o mais provável, dado o estado do seu hipocampo, é que ele simplesmente tenha esquecido. A carta, que para mim se tornou um emblema do heroico e invisível esforço da vontade, foi redigida a lápis em letras miúdas que escapam das linhas horizontais:
Querido Nick,
Recebemos sua carta uns dois dias atrás e ficamos contentes de saber que você vai indo bem na escola, principalmente em matemática. É importante escrever bem, porque a capacidade de trocar ideias influenciará o uso que uma área do conhecimento pode fazer em relação às ideias de outra área. Seus parentes mais próximos são, na maioria, bons escritores, o que diminui minha responsabilidade. Eu devia ter aprendido a escrever melhor, mas é tão fácil dizer: Deixe isso com a Mamãe.
Sei que não é muito fácil decifrar minha letra, mas é que eu tenho um problema com os nervos nas minhas pernas e uns tremores nas mãos. Olhando para o que escrevi, acho que você vai ter dificuldade em entender, mas com um pouco de sorte eu posso chegar ao seu nível.
O tempo deu uma virada, estava frio e úmido, agora está seco com um céu bem azul. Espero que fique assim. Continue fazendo um bom trabalho.
Eu te amo, Vovô
P.S. Obrigado pelos presentes.
O coração e os pulmões de meu pai eram bem fortes, e minha mãe se preparava para continuar enfrentando a situação por mais uns dois ou três anos quando, um dia em abril de 1995, ele parou de comer. Talvez estivesse tendo dificuldade para engolir, ou talvez, com o pouco que lhe sobrava de vontade própria, tivesse decidido acabar com aquela indesejável segunda infância.
Sua pressão arterial máxima estava em sete, tão baixa que mal dava para ser detectada, quando viajei a Saint Louis. Mais uma vez, minha mãe me levou direto do aeroporto para a clínica. Eu o encontrei enfraquecido, deitado de lado sob um lençol fino, com a respiração curta, os olhos semiabertos. Os músculos estavam debilitados, mas o rosto quase sem rugas aparentava calma e serenidade, e as mãos, que não haviam mudado em nada, pareciam grandes em comparação com o restante do corpo. Não há como saber se reconheceu minha voz, mas depois de alguns minutos que eu estava ali sua pressão subiu para doze por nove. Fiquei preocupado na época, e isso até hoje me incomoda, por ter tornado as coisas mais difíceis para ele com a minha presença: ele parecia pronto para morrer, mas tinha pudor de desempenhar um ato tão privado ou decepcionante na frente de um filho.
Minha mãe e eu nada podíamos fazer a não ser olhar e esperar, um dormia enquanto o outro ficava sentado em vigília. Hora após hora meu pai permanecia imóvel, cada vez mais próximo da morte; mas quando bocejou, aquele era o seu bocejo. E, da mesma maneira, seu corpo, debilitado como estava, ainda era radiantemente seu. Apesar de as partes sobreviventes de sua individualidade serem cada vez menores e mais fragmentadas, eu continuava vendo um todo. Eu ainda amava, específica e individualmente, o homem que bocejava naquela cama. E como eu poderia não criar histórias a partir desse amor – histórias de um homem cujo desejo continuou intacto o suficiente para desviar o rosto quando tentei limpar sua boca com um pedaço de algodão umedecido? Vou para o túmulo insistindo que meu pai estava determinado a morrer, e a morrer da melhor maneira que pudesse, em seus próprios termos.
De nossa parte, não queríamos que estivesse sozinho quando morresse. Talvez estivéssemos errados em pensar assim, talvez tudo o que ele estivesse esperando era ficar sozinho para morrer. Ainda assim, na sexta noite que passei em Saint Louis, fiquei acordado a madrugada inteira lendo de ponta a ponta um romance, enquanto ele permanecia deitado, respirando e dando grandes bocejos. Uma enfermeira entrou, auscultou seus pulmões e comentou que ele provavelmente nunca tinha sido um fumante. Sugeriu que eu fosse para casa descansar, e disse que mandaria uma profissional específica, do andar de baixo, para ficar com ele. Evidentemente, a clínica tinha uma enfermeira com um dom especial que, depois de os parentes voltarem para casa, persuadia os moribundos de que eles podiam morrer. Não aceitei a proposta e desempenhei eu mesmo esse papel. Inclinei-me sobre meu pai, que exalava um leve cheiro de ácido acético, mas estava asseado e aquecido. Eu me identifiquei e lhe disse que, o que quer que ele precisasse fazer, por mim estava bem, que ele não precisaria resistir, podia fazer o que fosse preciso.
No final daquela tarde, uma ventania de início de verão varreu Saint Louis. Eu estava batendo uns ovos quando minha mãe ligou da clínica e disse para eu me apressar. Não sei por que achei que tinha tempo de sobra, e comi os ovos com torrada antes de sair de casa, e no estacionamento da clínica fiquei sentado no carro ouvindo no rádio uma música do Blues Traveler que fazia sucesso. Nenhuma outra canção jamais me deixou tão feliz. Os grandes carvalhos brancos em torno da clínica balançavam e vergavam com o vento. Eu me sentia como se pudesse voar de felicidade.
Mas ele ainda não tinha morrido. A tempestade desabou sobre a clínica à noite, houve queda de energia, e minha mãe e eu permanecemos sentados no escuro, distantes que estávamos das luzes de emergência. Não gosto de lembrar como fiquei impaciente para que meu pai parasse de respirar, como estava pronto para me liberar dele. Não gosto de imaginar o que ele podia sentir deitado lá, que forma, pálida ou vívida, sensorial ou emocional, teria o esforço que devia estar fazendo em sua cabeça. Mas também não queria acreditar que não houvesse nada.
Por volta das dez horas, minha mãe e eu conversávamos com uma enfermeira na porta do quarto, pouco depois de as luzes terem voltado, quando notei que ele levou as mãos em direção à garganta. Eu disse: “Acho que está acontecendo alguma coisa.” Era a respiração agônica: o queixo se ergueu para tentar levar ar aos pulmões depois que o coração parou de bater. Ele parecia fazer com a cabeça, devagar e profundamente, um sinal afirmativo. E então, nada.
Depois que lhe demos um beijo de despedida e que assinamos os formulários que autorizavam a autópsia do cérebro, depois que andamos de carro pelas ruas alagadas, minha mãe sentou-se na nossa cozinha e, ela que não costuma beber, aceitou uma dose de Jack Daniel’s puro que lhe ofereci. “Agora eu percebo”, ela disse, “que quando uma pessoa está morta ela está realmente morta.” Não havia como discordar. Mas no ritmo arrastado do Alzheimer, meu pai não estava mais morto agora que duas horas antes, ou duas semanas, ou dois meses. Simplesmente perdemos a última das partes com a qual podíamos imaginar um todo vivo. Não haverá novas memórias dele. As únicas histórias que podemos contar agora são aquelas que já tínhamos.