terça-feira, 30 de março de 2010

Cineterapia com Trainspotting - outra versão



O Dr. Odon Cavalcanti, soube da proposta do filme e enviou suas anotações a respeito. Confira a opinião do experiente psiquiatra.

Trainspotting

Outros títulos: Os insaciáveis; Os Incapazes Incuráveis; Os destruidores dos outros e de si; Quando o outro é invisível; Bebês e Adolescentes Esquecidos

Ao escrever estas anotações, lembrei do teu artigo da segunda semana do bebê sobre o erotismo da amamentação. São pessoas que, provavelmente, quando bebês, não foram erotizadas. Foi quando começou o trainspotting, com a soma dos gens e das circunstâncias da vida das pessoas a partir da fecundação e do nascimento, focando especialmente as emoções do primeiro ano de vida.

O filme é desconfortável, às vezes pelo realismo pesado e pelo nojo de algumas cenas, que apesar de fortes, estão longe de realidades associadas às drogas, aos transtornos de personalidade e ao sadismo às vezes intenso das pessoas – no lançamento, muitas pessoas se retiraram do cinema.

O autor do texto, do roteiro e o diretor foram hábeis, os dois primeiros em pinçar o que é importante para gerar os insaciáveis, e o segundo por manter um clima ágil que possibilita acompanhar o filme até o final.

Os que assistem gostam do filme, desconfio que não sabem bem porque, pois ele nos leva mais a intuir ¹ a compreensão da tragédia dos amantes da heroína. O transcorrer do filme assinala o nascedouro do drama com a presença freqüente e o andar solitário de um bebê.

O autor do livro Irving Welsh e o roteirista dão ênfase às influências do consumismo e da economia de mercado ao mostrar os jovens como vítimas da atual ordem social. Mostram também a força dos dramas interiores das almas, carentes de cuidados, que em conseqüência se desorganizam. Welsh, num dos extras do filme assinala “que para o novo milênio o grande desafio é de dividir o bolo mais justamente”. Entende-se esta justiça para os cuidados afetivos, para a escolaridade e condições sócio-econômicas que revelem um aceitar do outro.

O filme conta aspectos da vida de quatro adultos jovens ligados à heroína: Mark Renton, Sick Boy, Slud e Tommy. Incorpora-se ao grupo Beagbe, violento, compatível com lesão irritativa cerebral do lobo temporal.

No início correm pela cidade em busca de aventuras e prazer. É um desespero em busca de um prazer maior. Na cena seguinte Sick Boy injeta heroína no braço de uma mulher e lhe diz que vai ser melhor que o orgasmo, logo ela lhe responde, iluminada: “é melhor que qualquer pinto”. Não de 1, de 100, é melhor do que todos os pintos. Slud não resiste, beija a boca de Sick Boy, sofregamente. Não é sexo nem tensão homossexual. É um vampirizar do prazer que dos dois emergia no injetar e receber o prazer da droga.

Numa outra cena Mark Renton compra droga da “Madre Superiora” e que naquela ocasião só tinha supositórios de heroína. Numa crise de incontinência retal encontra “a pior latrina da Escócia”, entra dentro de um vaso sanitário e mergulha com prazer num imenso lago azul-marrom. Foi um mergulho em épocas de sua pré-história feliz. Sem dúvida horrorizou aqueles com mais âncoras nesse período.

Abandonavam a droga e retornavam à droga. Renton comenta: “esta é a última ingestão das últimas”. São ciclos de delírio e incapacidade de compreender o que se passa.

Quando procuram empregos são até transparentes: “gosto de todas as pessoas e até de quem ninguém gosta”; “gosto de dar prazer aos outros, sou ótimo no lazer”. Infelizmente não sabem o que é prazer ou lazer, foram construídos sem essas capacitações. Sabem ser francos como Renton: “uso droga, fumo, engulo, enfio no rabo, injeto nas veias, vivo do seguro social e de pequenos roubos”.

Nas relações com as mulheres, nos intervalos do uso das drogas, só sabem receber. O sexo é vazio, sem afetos, não sabem compartilhar. Entendem quase nada do que seja parceria.

Quando morreu o bebê, perguntam quem foi o pai. Na verdade todos eram muito aquele bebê: o bebê carente e abandonado. Todos se sentiam-se assim, era o sentimento que os igualava e que fragilmente os unia. Seus afetos eram pobres, mais uma solidariedade animal. Quem os acolhia e ajudava era o "Madre Superiora", que fornecia a droga.

Quando Mark se apossou do dinheiro, foi e não foi roubo. Até foi justo (um pouco) em deixar uma parte para Slud, o único que referiu presentear a mãe. Talvez nem soubesse como fazê-lo.

Mark R., no final, ameaça com projetos: verdadeiros? , caretas? , falsos? . Ninguém sabe, foi o que mais avançou no entendimento de si e dos companheiros. Tinha pais, mesmo adulto, muito presentes e acolhedores. As reflexões dele durante o filme ameaçam ser salvadoras.

O que fazer com a legião de drogaditos e personalidades desorganizadas? Serão necessários não poucos cuidadores e que tenham capacidade para abraçá-los que é o que eles menos sabem na vida. Os que alcançam mais sucesso com os mais graves são os grupos religiosos, as organizações de alcoolismo e drogadição anônimos e as fazendas terapêuticas.

Surpreendentemente, as universidades e o estado são quase um zero à esquerda. Este último então tem em seu cardápio prisões cem vezes piores que o pior do que o filme mostrava.

Os cuidadores têm que ser disponíveis, afetivos e efetivamente atentos as suas próprias carências e, portanto compreensivos com as necessidades dos seus pacientes.

E a prevenção?

(Cuidados + Afetos + Estimulação) dos bebês

É complemento imprescindível o Teaser que aparece no trailer. É a mensagem síntese de Trainspotting.

Mark Renton está amarrado nos trilhos pelos três companheiros que correm se afastando. Ele, indiferente mesmo, pensa, poderia ter sido ele que os tivesse amarrado nos trilhos. Está sorridente (autenticamente) e pensa que o trem poderia se atrasar! Com o mesmo sorriso que viveu vai morrer. Esta é a verdade? É uma visão dos mistérios da vida e da morte.

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¹ são os que reconhecem no fundo das suas almas sementes de temática similares.

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