segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Projeto Terapêutico de Final de Módulo


Artwork: Van Gogh

Trabalho de conclusão do Curso de Instrução ao AT: um paciente imaginário
Baseado no conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, in Primeiras Estórias, Ed. Nova Fronteira, RJ, 1988, p. 32.

Nome do paciente: Eu
Família de origem do paciente: Pai, mãe, um irmão e uma irmã.

Nome do Acompanhante Terapêutico: Eliana Guedes Mussnich

História: Segundo Eu, ele adoeceu, sofreu "o grave frio dos medos" numa situação em que, já adulto, e por iniciativa própria, tomaria o lugar do pai na canoa onde este vivia e, no momento da decisão, "por pavor, arrepiados os cabelos", correu, fugiu, se tirou de lá, "num procedimento desatinado".

Entrevista inicial de Acompanhamento Terapêutico com o paciente Eu:

Eliana(eu), aqui identificada como AT, viajei para chegar até onde Eu vive: em frente ao rio. Ao me ver, nos cumprimentamos. Me apresento a ele como a estrangeira que vem lhe ajudar, que vem convidá-lo a sair do território de sofrimento onde se encontra.

Com que então, vai a conversa entre Eu e Eliana (AT):

AT: Então você vive aqui na beira do rio?
Eu: Faz tempo.
AT: E de que você gosta?
Eu: De pensar.
AT: Legal. Também gosto de pensar.
Eu: Mas tem uma coisa que eu gosto muito de pensar.
AT: Ah, é? Quer me contar?
Eu: Gosto de pensar que, um dia, virá alguém que vai pegar em mim e me depositar também numa canoinha de nada. Nessa água que não pára. E aí eu vou rio abaixo, rio afora, rio adentro.
AT: Numa canoinha de nada...
Eu: Dessas pra um só homem deitado.
AT: E o que você faz?
Eu: Fico aqui.
AT: Tem companhia?
Eu: Não. Mais ou menos. Você.
AT: É. Lembra que nós conversamos por telefone e você quis que eu viesse?
Eu.: Claro.
AT: E em que eu posso te ajudar, Eu?
Eu: Meu pai era homem cumpridor.
AT: Onde ele está agora?
Eu: Não sei.
AT: Ele era cumpridor.
Eu: Eu não sou. De que era que eu tinha tanta culpa, meu Deus?
AT: Vamos ver. O que você está fazendo aqui?
Eu: Nada.
AT: Não. Presta atenção: o que você está fazendo aqui?
Eu: Eu estou me lembrando do que aconteceu.
AT: O que aconteceu?
Eu: Um dia, quando eu era criança, meu pai mandou fazer pra ele uma canoa e foi viver dentro dela, no meio do rio. Aquela canoa era pra ele viver nela uns vinte ou trinta anos. Foi e não disse nada. Um dia, a canoa ficou pronta.
AT: Vamos caminhar um pouco?
Eu se levanta.
Eu: Ele foi, ainda me espiou como que dizendo de ir também. Mas eu tive medo da mãe, que jurou que ele não entrava mais em casa.
AT: Hoje o rio está mais baixo?
Eu: É.
AT:Onde vocês moravam?
Eu: Naquela casinha lá.
AT: Vamos até lá?
Eu: Vamos. Então, a gente ficou aqui, eu, a mãe, meus irmãos. Veio jornalista pra entrevistar o pai no meio do rio, mas ele se escondeu. Eu levava comida pra ele.
AT: Quantas pessoas cabem numa canoa?
Eu: Uma.
AT: Então, se só cabe uma, você hoje sabe que não teria espaço pro seu pai e você juntos na canoa que ele foi.
Eu: Eu sei. Por isso que eu achei, depois, que já estava na hora dele descansar e eu tomar o lugar dele na canoa.
AT: Na canoa dele.
Eu: Na canoa dele.
AT: Na canoa que o teu pai mandou fazer pra ele.
Eu: É, ele mandou fazer.
AT: Pra ele.
Eu: Sim, mas eu podia ter substituído ele.
AT: E nessa altura, quem morava com você?
Eu: Ninguém. A mãe e os meus irmãos foram viver na cidade.
AT: Eles resolveram tocar a vida pra frente.
Eu: Eu sou culpado do que nem sei. Mas me dói. E eu pergunto: a senhora acha que eu sou doido?
AT: Olha, eu não acho. Você lembra do meu nome?
Eu: Ah, desculpe.
AT: Sem problemas, o meu nome é Eliana.
Eu: Eliana.
AT: Eu trouxe pra você.
Eu: Um rádio de pilha?
AT: Você gosta de música.
Eu: Mas eu não escuto.
AT: Agora pode escutar, de rádio novo. É seu.
Eu: Eu não me lembro de músicas...
AT (ligando o rádio): Ouve.
Eu: Eu acho que todo mundo é doido ou ninguém é.
AT: Eu também.
Eu: Ha! A senhora não acha isso...
AT: Ué? Por quê?
Eu: Veio até aqui esse fim de mundo pra falar comigo.
AT: Sim, eu viajei até aqui pra trabalhar com você. Você quis que eu viesse.
Eu: Eu quis porque estou muito sozinho e o doutor disse que seria bom para mim ser acompanhado de uma pessoa que me ajudasse.
AT: Então você entendeu, não entendeu?
Eu: Agora ficou difícil. Essa música eu gosto. Eu não sei construir uma canoa.
AT: Nem eu. Mas tem gente que sabe.
Eu: O homem que fez a canoa do meu pai sabia o porquê dele querer ir embora, mas ele morreu antes de eu poder perguntar.
AT: Existem outros homens que fazem canoas.
Eu: Aqui não tem mais jeito. Eu só penso nisso. Que ele foi, não me levou com ele, e depois quando ele quis deixar eu trocar de lugar com ele eu não tive coragem.
AT: Sim. Agora, você pode fazer uma outra história. Uma nova história.
Eu: Como assim?
AT: Uma canoa pra você.

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